quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

"Na cidade grande, o próximo não existe"


Foto: Laila Santana/Folha-PE
O ex-ministro Gustavo Krause recebeu, ontem, a Medalha José Mariano, em sessão solene na Câmara de Vereadores do Recife. Em seu discurso, transcrito abaixo, ele fez uma declaração de amor ao Recife e, poeticamente, falou da 'cidade perdida', sua Vitória de Santo Antão, de onde veio, e 'a cidade desejada', a sua Recife adotiva. Confira:
'Saudações de praxe
Hoje é dia de reencontro.
Dia de passear pela memória e visitar reminiscências.
Dia de regar os sentimentos da gratidão e do afeto com a emoção da alegria.
Gratidão a Deus pelo privilégio de viver o suficiente para ver e rever.
Gratidão às pessoas generosas pela homenagem: aos vereadores que, acolhendo proposta do Presidente Vicente André Gomes, me outorgaram a Medalha do Mérito José Mariano e a honra de exibir no peito o que foi feito pelo e para o coração – a condecoração; gratidão aos amigos presentes e ausentes, porém, sempre juntos no mais valioso dos patrimônios, o patrimônio da amizade.
Nesta Casa, meus senhores e minhas senhoras, vivi momentos inesquecíveis.
Aqui consolidei meu fascínio pelo poder municipal por conta da força transformadora que carrega.
Neste sentido, tenho a declarar que a experiência como Prefeito e Vereador me fez aprender muitas lições.
(Que) O poder municipal é o mais humanizado dos poderes da República Federativa.
(Que) Tudo se vê sem a necessidade de retinas intermediárias; tudo se ouve sem necessidade de uma segunda voz.
(Que) As carências andam, falam, respiram, têm corpo, alma e batem na porta da autoridade municipal seja Prefeito ou Vereador sem a cerimônia das demandas sociais geralmente traduzidas pela abstração dos números e de dados estatísticos.
Para quem vive no município, e a gente mora no município, o mundo é a casa, a família, o bairro, a rua.
Depois, vem a Cidade, o Estado, o País, o Mundo.
O tempo é agora, hoje.
Depois, vem o amanhã.
Vem, daí, o sentido das urgências e o valor do humano que dão à vida a inconfundível cor local no pequeno/grande universo de cada cidadão.
Nesta moldura, identifico no poder local, excelências que lhes são inerentes: a sensibilidade para perceber as reais prioridades e a possibilidade de adotar soluções criativas, simples, baratas e participativas graças à proximidade com as pessoas.
É a mais singular das esferas de poder porque só a ele chega a mão estendida da súplica e o olhar perdido da desesperança.
E mais: aqui, nesta Casa e grande mestra, aprendi que a democracia brasileira entrou pela porta dos Senados da Câmara nos tempos do Brasil colônia.
Pude compreender a natureza dos parlamentos, poder plural, poder anti-césar, casa transparente e próxima dos seus representados, abrigo da liberdade, esteio da democracia que defende por primeiro e, por derradeiro, com ela resiste ao furor dos tiranos.
Aqui aprendi que não há lugar para o voluntarismo e para o personalismo por uma simples razão: todos são iguais perante voto.
E não podia ser diferente. O antigo “Senado da Câmara” do Brasil colonial abriu as portas da democracia representativa pela voz dos vereadores ainda que restrita aos nobres de linhagem, proprietários, altos funcionários da Coroa, chamados de “homens bons”, contingente ampliado pelos burgueses emergentes, denominados de “homens novos”.
Naquele passado remoto, estava inaugurado o primeiro instrumento político de defesa dos interesses coletivos o que me leva afirmar: as Câmaras e o exercício do poder colegiado são autênticas escolas da democracia política.
A tudo isto, juntam-se o reconhecimento pelas lições, por mim recebidas, e a confirmação de que somos o que lembramos.
É o que certificam as recordações, quando vereador (88/90), e nelas estão registrados o clima de respeito às divergências e a permanente busca do entendimento; a rica experiência de participar, como relator, de uma obra coletiva que foi a Lei Orgânica Municipal.
Que foi subscrita por um colegiado composto por colegas de incomum espírito público e dos quais muito me orgulho; a percepção angustiante do cotejo entre a cidade perdida e a cidade desejada.
Com efeito, esta percepção - cidade perdida, cidade desejada - foi ajudada pela minha história de vida. Natural da queridíssima Vitória de Santo Antão, filho adotivo do Recife, irmão de sangue do bairro da Torre, sou culturalmente um ser interiorano e suburbano.
Posso afirmar que mantenho as raízes. Raízes fincadas na cidade pequena e no fragmento urbano – o subúrbio – onde existiu e existe o próximo, infelizmente hoje, emparedado pelo cimento e pelo aço da cidade grande.
Na cidade grande, o próximo não existe. Amar todo mundo é uma abstração; somente no aconchego da vizinhança, existe o próximo.
Eis aí a diferença entre a cidade perdida e a cidade desejada.
A busca pela cidade desejada é o desafio atual que se põe diante dos gestores, dos legisladores e da cidadania de modo a restaurar o conceito original de cidade, a civis, a urb, romana e a polis grega, esta notável construção humana para onde acorreu a humanidade que nasceu no campo e foi em busca da morada boa e segura.
Há quem afirme que o inferno está nas megalópoles. Não chego a tanto. Porém, sem arroubos pessimistas, constato uma forte tendência de grave comprometimento da qualidade de vida das pessoas em decorrência do fenômeno da urbanização desordenada e de um estilo de vida que consagra o ter em prejuízo da dimensão existencial do ser.
Devo, no entanto, ressaltar minha confiança na capacidade humana de superar adversidades, de se reinventar, em especial, minha confiança nas instâncias políticas a exemplo das Câmaras Municipais e na mobilização da cidadania, forças transformadoras do mundo real.
Caríssimos amigos e amigas,
Devo confessar que dois momentos distintos, aqui vividos, me marcaram profundamente.
O primeiro, quando recebi o título de cidadão do Recife, por iniciativa do então vereador Gilvan Brandão, falecido, de quem reverencio a memória.
Aquele momento me levou a caminhar pela estrada das recordações da infância, idade da inocência, início da aventura da vida, vida que somente merece ser vivida quando aquecida pelo calor dos afetos.
Permito-me citar um trecho do discurso que proferi na ocasião e que traduz o significado do início da minha jornada:
“Casa de porta e janela, chão de tijolo, imagem humilde – imagem primeira que me ficou para sempre – das bandas de Vitória de Santo Antão, cidade onde nasci. Começo de vida.
Tudo era escasso. Somente sobrava a vontade de vencer. Meu pai, Severino, retirante, duas vezes: a primeira quando foi para Vitória, de broca e boticão nas mãos, doutor em dentes.
A segunda quando voltou ao Recife. Um retirante diferente com algum dinheiro no bolso. Queria colégio melhor para os meninos...Coisas da pequena classe média. Minha mãe economizava tostão.
O terno branco de meu pai por mim chamada “roupa de ir ao Recife”, quando dava mostras de enfado, era magicamente transformado em calças curtas para vestir os domingos de matinês dos cinemas Braga e Iracema. Mulher de metro e meio de coragem. Feita de aço e movida a amor”.
Querido amigo Vereador e Presidente da Câmara municipal, Vicente André Gomes.
Propositadamente, falei no “calor dos afetos”, porque somente o afeto, a razão do coração, justifica sua iniciativa de propor a outorga da Medalha do Mérito José Mariano, afeto, aliás, que ultrapassa duas gerações e tem origem na magnífica figura de Moacir André Gomes, o príncipe negro de Casa Amarela, e se derrama sobre Priscila.
Reitero minha gratidão a você e aos seus pares.
Sei que estou longe, muito longe, de merecer a comenda que leva consigo o nome e o exemplo de um dos maiores vultos da nossa história.
José Mariano, militante da causa da liberdade, combatente do abolicionismo, hipotecou sua vida e a própria liberdade em defesa dos escravos ao lado do amigo e colega de turma, o visionário Joaquim Nabuco, e de grandes brasileiros, como José do Patrocínio, Castro Alves, André Rebouças, Rui Barbosa e tantos outros.
Ele e o Recife se merecem. Ambos moveram a história, a espiral inacabada que marcha pelos impulsos de ideias e personagens, apenas aparentemente mortos, eis que tocados pelo dom da permanência.
Nós, filhos da cidade heróica de Guararapes e Mascates, somos herdeiros e guardiões do Pernambuco irredento, a pátria de Mariano.
O seu belo exemplo nos chega também pela voz do menestrel Olegário Mariano, seu filho, o “Príncipe dos poetas brasileiros” que narrou em versos a saga e a luta do homem e sua obra:
“Minha mãe empenhando suas jóias
Para que se vencesse a eleição de Nabuco.
O verbo do meu pai, prisioneiro
De Floriano na ‘Revolta’. Tudo passa
Diante de mim, dentro das cenas familiares.
E o rio na marcha sonâmbula e triste, retinha
No ruído das águas tranquilas as vozes dos homens valentes
Que puseram, cantando e chorando, a primeira pedra
No alicerce moral da minha grande terra”. 
A todos agradeço a atenção e o gesto amigo da presença'.

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